quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Enquanto isso, no Brasil... Quem acendeu a luz?

No dia 10 de novembro, por volta das 22h, as luzes do Brasil se apagaram. O breu se instalou sobre a maioria dos Estados e não se via nada. Os geradores suportariam somente até certo horário e, então, viraria escuridão total. Ninguém sabia explicar o que ocorria. Estávamos incomunicáveis: sem telefone e sem internet. Algumas pessoas se mantinham informados através de conexões móveis, mas isso também não sobreviveu ao blecaute. Os boatos sobre o que havia causado o apagão começaram: era o tão esperado “fim do mundo”, ou um provável golpe de Fernandinho Beira-Mar ou, ate mesmo, invasões alienígenas - meu favorito. Nenhum era verdade e a vida continuou normalmente. Mas durante o crepúsculo, eu passei por experiências únicas. Assim que caiu a eletricidade, reuni as velas espalhadas pelo apartamento e fui buscar os fósforos, que, para a minha surpresa, nunca encontrei. Não achei um mísero palito ou isqueiro. E lá fiquei, no escuro. Nada de lanternas ou lampiões. A bateria do meu celular já estava quase no fim e não vi alternativa além de ir dormir.

Pegar no sono não foi fácil. As pessoas na rua estavam animadíssimas com a brincadeira, e a gritaria, mesmo do 12º andar, ressoava em alto e bom som. Apesar da escuridão, a noite estava clara, e iluminava todo o meu quarto. Olhando fixamente para o teto, mil pensamentos invadiam a minha mente inquieta. Um deles foi o caso da menina da Universidade Bandeirante que sofreu uma humilhação bárbara dentro da própria faculdade por ter ido à aula usando um vestido (realmente) muito curto. Essa “ousadia” atiçou uma exagerada revolta entre os alunos, que ofenderam a jovem de forma cruel e violenta. A repercussão foi tanta que minha mente remói o caso até durante o apagão.


Naquela noite, me agarrei a qualquer pensamento para fugir de uma saudade. Na verdade, me esquivo dessa sensação há semanas. Mas sem sono e numa escuridão convidativa, não tive para onde ir. Estava sozinha com meus pensamentos e emoções. Resolvi me entregar à onda de sensações que, sem a minha autorização, já invadiam e afogavam o meu corpo. A saudade, à qual me refiro, é de um grande homem que, num piscar de olhos, saiu do meu campo de visão e instalou-se unicamente em meu coração. Mesmo na escuridão, consegui ver seu sorriso, sentir o conforto de seu colo e o calor de seu abraço. Suas palavras, nunca omissas, ecoavam mais alto do que a gritaria lá fora. Falo de meu pai, de uma dolorosa perda, recente demais para apreender. As infinitas horas sem luz reacenderam a minha alegria e iluminaram a minha alma. Pude apreciar as memórias boas sem o amargo das últimas recordações. Reorganizei os meus pensamentos e assumi a responsabilidade de ser um pouco mais parecida com uma pessoa que proporcionou nada menos que gargalhadas e trouxe imensa paz aos outros.


As luzes de São Paulo voltaram ao normal antes do dia amanhecer. Eu, porém, passei a noite em claro, iluminada por uma luz inexplicável. Apenas sei que minha vida não voltou ao normal, como a de outras pessoas. Ela recomeçou. E o que me guia é esse amor transformador que, ao invés de deixar tristeza com seu breve adeus, voa livre ao som de aplausos.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Enquanto isso, no Brasil... Os afogados

O País está debaixo d’água. E não digo isso apenas devido ao zum-zum-zum do pré-sal... As chuvas torrenciais que afogam o país pelas últimas semanas alagam ruas, desabam casas e transbordam o Tietê. O mundo começou a cair numa terça-feira fria pós-feriado. A loucura nas estradas já havia complicado o trânsito nas principais capitais e ninguém imaginou que pudesse ficar pior. Mas o Brasil foi de encontro ao caos. Ele bateu à nossa porta e foi um verdadeiro salve-se quem puder. Santa Catarina voltou ao desesperador estado de alerta que tanto assustou a população no ano passado. Acreditem: não há guarda-chuva que aguente o vendaval. Naquela mesma terça-feira insana, eu passei três horas dentro do carro tentando chegar ao meu trabalho, trajeto que faço tranquilamente – e em dias normais – em 20 min. Além de desligar o carro pelo menos seis vezes, presenciei umas três ou quatro batidas, xingamentos mil e pessoas encharcadas no ponto de ônibus esperando o transporte que, sem dúvida, não chegou tão cedo. Aproveitei o tempo ocioso para reparar nos motoristas dos carros ao redor, uma distração surpreendentemente curiosa. É engraçado observar o que as pessoas fazem quando acham que ninguém está olhando: comem de boca aberta; cantam os mais variados estilos musicais em alto e bom som – do rock ao sertanejo universitário (que, aliás, é a nova febre brasileira); colocam o dedo no nariz; gritam ao telefone; tiram fotos de si mesmas fazendo caras e bocas... Enfim, comportamentos constrangedores. O repetitivo movimento de mudar a marcha do ponto morto à primeira e, logo em seguida, voltar para o neutro, cansa, distrai e é incrivelmente desgastante, além de nos fazer apelar à passatempos vãos. Depois de três horas de estresse, dificuldade e, admito, um leve entretenimento, finalmente me rendi ao óbvio: desisti e voltei para casa. Aliás, poucas pessoas conseguiram chegar ao trabalho nesse dia. Em apenas um dia caiu 80% da água que geralmente cai em 30 – e eu ainda suspeito uma certa modéstia nesta estimativa.

Acompanhando o rádio insistentemente, muitas questões vieram à tona: onde está a verba destinada às construções e manutenções dos piscinões? Na gaveta, claro. A situação vivida pelos brasileiros nos últimos tempos tem sido absolutamente inadmissível. Vivo em São Paulo há 22 anos e jamais enfrentei tal bagunça – e os caminhos que faço diariamente sugerem engarrafamentos bárbaros e intransitáveis. Olho para fora da janela do 16º andar da Editora Abril e vejo chuva, água, dilúvio. Testemunho o mar de automóveis na cruel saga das Marginais. Ah, que vontade de fugir... Uma leve tentação. O que nos resta é ter paciência – um difícil desejo em tempos como estes.

Texto publicado no jornal americano NOSSA GENTE, jornal dedicado à comunidade brasileira que reside no Estado da Flórida, nos Estados Unidos. Faço parte do grupo de colaboradores e assino a coluna ENQUANTO ISSO, NO BRASIL. Assim, aos poucos, vou me realizando. As realizações vêm aos poucos...e na medida certa.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Enquanto isso, no Brasil... O país de primeiro mundo

Estou de volta há quase quatro semanas. Depois de passar um tempo viajando por Moçambique, país africano que despertou em mim um enorme senso de ‘mundo’ e me apresentou as mil facetas da realidade humana, voltei para um lugar onde a guerra está no Senado. E isso não faz sentido. Cada país com seus problemas, claro, mas é quase inimaginável a possibilidade de levar uma vida normal daqui pra frente. Não há como assimilar a futilidade dos nossos problemas e das nossas necessidades depois de conhecer o real sofrimento do ser humano. Quando falam do atraso do Brasil e das dificuldades ainda enfrentadas por aqui, costumam dizer que é um país de terceiro mundo. Onde estaria, então, um lugar como Moçambique, onde apenas 14% da população têm energia elétrica, 16% têm HIV/AIDS e mais de 50% é analfabeta?

Destaco um grave erro cometido por muita gente, equívoco e generalização (para não dizer ignorância) que eu mesma já atentei: imaginar que o continente africano é um vasto campo de refugiados. Em alguns lugares, essa ideia tem sua validade. Mas é preciso ter cuidado ao crer piamente nessa superficial visão que a mídia tenta implantar em nossa mente. Além da desgraça, existem milagres, sim. Lá, eles conhecem e praticam algo tão desconhecido por nós, um estado de espírito chamado “resiliência”. Como uma mola, encontram forças para se reerguer.

A grande estupidez é viver uma vida na qual acreditamos ser a verdadeira. Supor que conhecemos o “outro lado da moeda” quando, na verdade, vivemos numa bolha, numa exceção. Não há como, pelo menos para mim, olhar a penúria largada nas ruas das nossas cidades e sentir alguma pena, alguma compaixão. A tristeza, a miséria, a fome e o frio são vilões completamente ausentes do nosso campo de noção. Você pode discordar comigo e me desafiar a persistir nessa opinião, mas garanto: nós não sabemos o que é pobreza. Pelo menos não nos grandes Estados. O Norte do nosso país é, certamente, uma grande ressalva.

Eu ainda não encontrei em mim as forças para acreditar e aceitar que vivo em país de terceiro mundo. Na minha humilde opinião, vivo em um de primeiríssimo mundo. Passei três semanas tomando banho de balde – às vezes de caneca -, dormindo com uma rede mosquiteira ao redor da minha cama, ouvindo – e sentindo – o pavor nos berros das crianças ao me verem, uma assustadora mancha branca. Tive pessoas se ajoelhando aos meus pés e se entregando à subserviência cruel e arcaica de uma escravidão extinta apenas na prática, e mulheres dando à luz durante o trabalho, colocando a criança dentro da bacia que carrega na cabeça, e indo para casa, feita de pau-a-pique, apenas no fim do dia, após quilômetros e quilômetros de caminhada. Eles vivem na escuridão, uma sagrada e bendita escuridão – e não sabem o quanto são miseráveis. E isso é incrível, é abençoado.

A verdade é que aos olhos do mundo, o Brasil continua sendo um país de terceiro mundo. Só me resta, então, chegar à conclusão que, simplesmente, a África não existe.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Enquanto isso, no Brasil... Bem longe dele

Estou em Moçambique, do outro lado do mundo. Apenas uma entre as milhares de áfricas que existem sob o mesmo pano do continente africano. O Brasil ficou para trás e a distância entre os dois países não é meramente geográfica - ainda que a língua seja a mesma. São dois mundos; infinitas realidades distintas e remotas. O país é minado pelo vírus HIV, que atinge mais de 16% da população. A expectativa de vida da população gira em torno dos 45 anos e os surtos de malária e cólera matam dezenas de pessoas ao ano. O choque não é sutil - é estrondoso, quase apavorante. O que estou fazendo aqui? Vim colocar os pés no chão. Como jornalista, a busca por isso é fundamental. Como ser humano, é crucial.

O ponto de partida foi Maputo, capital moçambicana. O trânsito nas ruas consegue ser pior (e bem pior) que o nosso. As “estradas”, como eles se referem às ruas, não têm faixas para pedestres - ou qualquer outra, para dizer a verdade. Além disso, o transporte público é demasiadamente precário, o que permitiu o surgimento e prevalência das famosas “chapas”, vans e caminhonetes particulares usadas para a condução das pessoas nas cidades do país. Os “chapeiros”, ou motoristas, colocam 30 pessoas em carros que suportariam até 10. Cansada do clima urbano, segui viagem.

Cada vez mais afogada pelos montes, lavo meus olhos com as lindas paisagens. Aqui, o céu é maior e é possível vislumbrar toda a sua dimensão. Parece um véu azul que protege e envolve o lugar de ponta a ponta. Fiquei alguns dias na província de Tete, onde encontrei muitos brasileiros que vieram para Moçambique a trabalho. Poucos dias depois, voltei à estrada. No caminho a Angónia, parei em Zóbuè, um dos distritos da província de Tete. Nos acostamentos, milhares de pessoas vendem batatas fritas, ratos em espetos (!!), frutas, amendoim e camisas dos fenômenos Ronaldo e Barack Obama. Ainda no trajeto, milhares de casas feitas de barro, palha e madeira, perdidas ao pé das estradas. Os banheiros, buracos no chão cercados por bambu, ficam do lado de fora das residências. Muitos quilômetros separam as vilas e comunidades que ainda sobrevivem sem energia elétrica. Estou encantada com a cultura e com o poder espiritual que comanda a vida das pessoas. Quem tem a última palavra são os curandeiros, “médicos tradicionais” que solucionam qualquer problema com uma erva com um remédio natural. E, finalmente, o distrito de Angónia. Apesar da difícil realidade, é um lugar repleto de paz. Montanhas, cabritos e mulheres lindas ilustram o retrato do local. Mas a qualquer momento, sigo viagem. Enquanto isso, o Brasil continua longe, extremamente longe.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Enquanto isso, no Brasil... O amor nos tempos do cólera

Aquela segunda-feira não seria como as outras. No caminho para o trabalho, a notícia chegou pelo rádio: um avião havia desaparecido misteriosamente pouco depois das onze da noite em algum lugar do Atlântico. Um frio na barriga tomou conta e mil cenários passaram por minha mente, que tentava imaginar o que teria acontecido e como. Pensamentos inquietos impedem que eu pegue no sono com facilidade até hoje. O envolvimento é quase sedutor. Vai ver a profissão de jornalista torne o contato com o mundo real bem maior e mais intenso. Quase inevitável. E não tenho tempo suficiente de carreira para ter endurecido - ou experiência o bastante para saber como lidar com esse endurecimento. Ainda não consigo me manter distante. E, na verdade, nem sei se quero.

Para tentar aliviar a minha intermitente confusão sobre o papel que devo assumir diante de tantos fatos impostos pela vida e pela profissão, decidi participar de um debate sobre Jornalismo Literário com feras da área: Pedro Bial (apresentador de TV), Eliane Brum (repórter especial da revista Época), Daniel Piza (editor do jornal O Estado de S.Paulo) e Sergio Vilas Boas (jornalista e escritor). A discussão defendia a humanização e a sensibilização do Jornalismo contemporâneo; o resgate do envolvimento do profissional com a sua pauta; e a resistência de textos “escritos com as entranhas”, definição que Gabriel García Márquez deu ao seu romance O amor nos tempos do cólera. Ao ouvir tanto profissionalismo refletido em cada um deles, percebi a minha inexperiência. Até que ponto devemos nos envolver com aquilo que escrevemos, lemos e vemos?

Ao final do evento, Daniel Piza me chamou num canto e me deu seu cartão: “esta é a sua resposta”. A frase que li no verso, escrita à mão com tanto carinho pelo brilhante jornalista, ecoa na minha mente sem descanso: cold eyes and warm heart.

Sob o encanto das palavras de Piza, viajo a Moçambique em menos de um mês na tentativa de humanizar os meus versos, os meus pensamentos e os meus sentimentos. Para me transformar na melhor profissional que posso ser. Para virar gente. De nada vale a distância interminável entre o ser humano e a dor. Por 10 dias (que, certamente, mudarão a minha vida) vou acompanhar missões humanitárias que combatem doenças como HIV, malária e cólera no país. E, para brigar com tantas enfermidades, levo meu medo - ainda sem nome. Talvez, o pior de todos: o pavor de não ser capaz de esfriar os olhos e deixar transbordar o coração.

Diante de um grave analfabetismo emocional, me encho de coragem e embarco em uma verdadeira mudança de vida. Daqui, saio plena. Completa da forma mais incompleta que alguém aos 22 anos poderia se sentir. E, pelo menos por ora, com o coração pegando fogo.

Texto publicado em 16 de junho no jornal americano NOSSA GENTE, em sua 27ª edição. Jornal dedicado à comunidade brasileira que reside na Flórida - Estados Unidos. Faço parte do grupo de colaboradores e assino a coluna ENQUANTO ISSO, NO BRASIL. Assim, aos poucos, vou me realizando. As realizações vêm aos poucos...e na medida certa.